Travessia pelo desconhecido

Texto escrito por Flávia Moraes, diretora do documentário Milton Bituca Nascimento (2025), disponível para assistir no Globoplay.

Quando recebi o convite do Augusto [Nascimento], através do Victor Pozas, para fazer um documentário sobre a última turnê do Milton, tive um dilema: fazer um trabalho que pudesse representar o Milton, sem saber se poderia entregar um filme à altura dele. É um convite, mas também um desafio. Então, você imagina… era de perder o sono.

As pessoas esperam que um documentário siga aquela escola mais clássica, com o diretor torcendo para acontecer uma novidade instigante. Mas eu não estava nessa vibe. Queria um filme que representasse o Bituca, e, principalmente, que fosse uma homenagem para ele em vida. A ideia era mostrar esse momento delicado, de um artista desta magnitude se dando conta de que não vai mais subir no palco, não vai mais cantar para multidões.

Então, esse filme começa comigo falando com o filho dele: “Olha, eu gostaria de conversar com o Milton antes de topar o projeto, para entender se ele quer”. Então, foi o que fiz: saí de Los Angeles, fui para o Rio de Janeiro e passei três dias acompanhando o Milton Nascimento. 

No primeiro dia, ele ficou bem mais reservado. No segundo, ele quebrou mais o gelo e, no último, senti que poderia jogar a pergunta: “Milton, você quer fazer essa turnê?”. Ele respondeu muito firme: “Quero. Eu preciso olhar no olho dos meus fãs pela última vez.”

Durante a turnê, fomos encarando situações, entrevistas, que nos permitiram transitar pelo desconhecido. Milton nos deu a liberdade de poder fazer uma leitura de sua história que não é uma foto, mas um retrato pintado com as cores que a gente viu durante esse percurso. Foi um processo de lapidação, de entender o tempo dele, de entender quando chegar, entender os silêncios. E ele foi se abrindo, se dispondo pro filme de uma forma muito generosa.

É um documentário sobre a turnê, mas é também um exercício de humanização do mito. Os bastidores desse projeto se caracterizam por um exercício humano, de percepção desse momento dele, de entender como chegar, a hora de chegar e até a hora de não chegar. 

O Milton é muito reservado… misterioso, até. Ele não é um cara que sai falando, abrindo o coração, tendo conversas cabeça com todo mundo… até mesmo porque ele se comunica num outro lugar. Um lugar do etéreo, da natureza, da simplicidade. Ele é muito simples, quase prosaico. Acho que a experiência com ele é quase como estar em um retiro. 



Há uns 15 anos, eu acompanhei o Dalai Lama durante o tempo que ele veio ao Brasil, para um documentário que registrou essa passagem dele pelo país. Trabalhando com Bituca, eu me lembrava da experiência com o Dalai. Porque os dois têm uma forma de se comunicar muito particular. É como se fossem dois meninos. De repente está aquela zorra sensacional no set, todo mundo falando ao mesmo tempo, e o Milton está parado, prestando atenção num passarinho que está numa árvore. Em algo que ninguém viu. 

Pra mim, o filme tem dois momentos: começa na Europa, de um jeito mais simples, produzido meio que “na unha”, e vira outro quando chegamos no Brasil, com uma equipe maior, turnês em estádios, muitos convidados. O Marcelo Ferla, que também assina o roteiro — inclusive, o belíssimo texto narrado por Fernanda Montenegro — foi fundamental. Enquanto eu estava nas entrevistas em campo, ele atuava dos bastidores, no Brasil, pesquisando em tempo real sobre as pessoas que apareciam nos shows e costurando essas informações. E também o Victor Pozas, responsável pela direção musical, que dá todo o clima da narrativa.

Começamos o filme com um olhar de fora para o Milton. E parece que quando a gente olha com uma certa perspectiva, vê que a imensidão do Milton é também a imensidão do Brasil, da nossa cultura. Nas entrevistas, a gente tentava entender o que fazia com algumas pessoas, que não entendiam uma palavra de português, se conectassem tanto com a obra dele. 

Um momento que me lembro com muito carinho foi na semana em que ele visita o Wayne Shorter. Foi a última entrevista do Wayne. E fica muito claro que ali, é uma despedida entre amigos, eles sabem que não vão se ver mais. 
E o Wayne foi o cara que abriu a porta do mercado americano para ele. O Milton chegou para ver o Wayne, já velhinho, vindo do hospital, nos últimos dias de câncer. De alguma forma, Milton parecia rejuvenescer ali; rolou uma energia muito única, os dois ficaram em silêncio. 

Foi depois desse encontro que conseguimos fazer a entrevista no quarto do hotel, que aparece no filme. Foi ele sentado na cama, eu atrás da parede, a câmera posicionada discretamente. O Pedro [cinegrafista] dava pequenos movimentos de câmera, como se fosse alguém espiando de fora, criando um efeito quase voyeurístico. Ali, Milton se abriu de um jeito que depois não se repetiu, falando da mãe, de Elis, de Angela Maria, do que ele ouvia quando era criança.  

O Milton tem algo de predestinado. São pessoas que, quando tocam algo, fazem as coisas acontecerem. Do silêncio dele, emerge uma energia que as pessoas projetam e que se transforma num verdadeiro núcleo criativo. Eu sempre brinco: ele é um Yoda.

Também digo que meu diretor de casting chama-se Milton Nascimento [risos]. Foi ele, por meio do Augusto, que fazia os contatos. Milton convidava as pessoas para os shows. As pessoas — literalmente, todas que chamamos — dispuseram a falar. Quem não conseguia ir ao show, ligava para aparecer no dia seguinte.

Tiveram coisas surreais, tipo Spike Lee querendo entrar no camarim do Milton. Só que a gente já estava com o Paul Simon, aí tivemos de falar, “pede pro Spike Lee esperar um pouco porque já estamos aqui com o Paul Simon…” você tem ideia? [risos]

Mais do que pesquisa, o trabalho era de preparação em tempo real: entender como abordar cada convidado a partir da sua relação com o Milton. Então, à medida que a gente conversava, buscava se aprofundar nessas conexões para que o diálogo fluísse e nos levasse a lugares interessantes.

Outra cena emocionante foi quando ele subiu no palco do La Fenice, em Veneza. Ele sabia que aquele teatro milenar, lotado, seria o último palco europeu da sua vida. Ele entra caminhando devagarinho, sai aplaudido de pé. 

Em cada lugar foi emocionante — Nova York, Los Angeles, Barcelona, Lisboa. Ao longo desse percurso, foi ficando mais claro que o nosso produto mais internacional, mais valoroso, é realmente a música. Não dá pra dissociar o pensamento da cultura brasileira da nossa música. 

Começamos com quase 100 horas de material para chegar a apenas 2 horas de filme, e nesse processo, algumas entrevistas se tornaram fundamentais para organizar a narrativa. A fala de Pat Metheny, por exemplo, é muito bonita, porque ele diz que Milton só pode ser realmente entendido ao ser ouvido, porque sua música ultrapassa o racional e toca o divino. 

Teve também o encontro com Wayne Shorter: foi tudo meio caótico: o Wayne Shorter em sua casa em Los Angeles, com a TV ligada passando desenho, o neto chorando, um rolo de papel-toalha no canto, remédios jogados atrás dele…. A luz entrava dura pela janela, sem charme. Ele, já velhinho, quase não falava mais, parecia que seria complicado. 

Mas foi a coisa mais linda do mundo: ver aqueles dois velhinhos juntos, compartilhando aquele instante. Um dos momentos mais bonitos do filme. Também lembro a entrevista com Ronaldo Bastos, que mal conseguia falar de tanta emoção. Quando colocamos “Cais” pra ele ouvir, baixou um silêncio carregado de significado. 

Há um momento muito emocionante ali, desses músicos já envelhecidos, olhando para trás e percebendo, talvez pela primeira vez, a real importância do que fizeram — algo que, na época, talvez não tivessem plena dimensão.

É curioso, porque estávamos gravando justamente quando o disco Clube da Esquina (1972) foi eleito um dos melhores de todos os tempos. Para mim, tem também um lado pessoal: foi o primeiro LP que comprei na vida, ainda com mesada, porque fiquei encantada pela capa dupla sem nem saber direito o que era isso [risos]. Então, havia essa memória afetiva da adolescência. 



O Milton tem uma paixão pela tela — se não estava no palco, estava diante de uma. Podia ser um filme, uma novela, um programa diurno. Ele assiste Ana Maria Braga, ele reclama do papagaio, ele fala da fofoca da novela…. [risos]

E ele, sobretudo, é um grande cinéfilo. Tem filmes que assiste repetidas vezes. O seu preferido era Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), do Spielberg. Ele vibrava com a cena musical, cantava junto, se emocionava como se fosse a primeira vez. E tinha esse ritual: sempre escolhia um santo para assistir ao filme. Eu tive o privilégio de ser uma dessas pessoas. Imagine, eu e ele, lado a lado, vendo Contatos Imediatos, dividindo uma pipoca. Foi inesquecível.

Entre tantos reconhecimentos — o prêmio Grande Otelo, a indicação ao Grammy, tantas alegrias que esse projeto trouxe —, para mim, a maior de todas, foi ter podido mostrar o filme ao Bituca em vida. Ver ele se emocionando, rindo, comendo pipoca enquanto assistia à própria história na tela. Na estreia do Rio, em vez de olhar para o documentário, eu olhava para ele, e aquilo já valia tudo. Hoje, o Augusto conta que, em vez de pedir para rever Contatos Imediatos, Milton pede para assistir ao documentário. E isso, para mim, é o maior presente de todos.

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